Humanizar não é forma

rogerio lourenco
8 min readNov 9, 2021

--

Quando fui conversar com o pessoal do VUI Design Br sobre humanização em interfaces de voz, fiz uns slides com auscultas da etnografia e da análise do discurso. Porquê seres humanos precisam humanizar o que fazem para outros seres humanos? Qual é o uso dessa palavra na produção de interfaces de voz? Fui como pesquisador; mas fui também como alguém que tem a experiencia profissional de desenho de diálogos interativos.

O cenário da pandemia atual fez os agentes de voz, agora em 2021, o foco de debates, atenções, promessas e críticas. Todavia, a reflexão sobre a humanização em geral, e mesmo nas interfaces de voz, tem uma longa história e até bases mitológicas.

Os primeiros usos do termo “humanizar” são religiosos, depois médicos e, nos dois últimos séculos, econômicos. No Brasil, por volta de 1700, se usava “humanar”. Se por volta de 1850, era sinônimo de compaixão pelos escravizados, pelos trabalhadores da revolução industrial, hoje, humanizar está na intenção de quase toda pessoa que desenha produtos e serviços a serem experienciados.

Os slides têm um roteiro: 1) panorama, 2) histórico, 3) uso, 4) implicação e
5) reflexão. Comecei com um trecho anônimo de uma discussão de grupo que encontrei:

Nesse exemplo, ai em cima, há dois pontos fundamentais nessa discussão. O primeiro, foi contextualizar o que é etnografia. Muitas pessoas que trabalham em Design têm interesse pela cultura como espaço de reflexão. Agora, elas querem (ou são pedidas para) fazer a cultura de quem usa funcionar para os produtos e serviços que desenham.

A cultura material que vem sendo digitalizada no uso simbólico dos produtos e processos tem cadeias de ações de naturezas diversas: morais, legais, religiosas e mesmo idiossincráticas. Essa cadeia de ações precisa ser levada em conta, porque é visível a qualquer pessoa que tome contato com esses produto e processos.

Elas percebem que o comportamento humano tem padrões; esses padrões obedecem certos traços coletivos que as pessoas tomam para si como sendo seus. A cultura é o software que elas têm para rodar aquilo que seu design cria.

Isso não acontece no vazio. Toda pessoa pertence a um grupo social. Ethnos (έθνος) é uma palavra do grego para o conceito de nação, povo. Não quer dizer exótico, tradicional, distante, raro, inferior, místico…Pensem que nossa espécie tem uma ecologia étnica: uma diversidade de formas de sermos humanos, a cultura.

O interesse na cultura é visto como uma forma de alcançar as representações “primais” dos humanos, os mistérios. Isso se traduz, não raro, em estereótipos de designers onde aspectos culturais não ocidentais (habitação, vestimenta, alimentação, gestos, língua, etc.) são chamados de “étnicos”. Seria uma forma de evocar nosso comportamento “subconsciente e primal” ( e portanto bom para vendas ) porque esse lado impulsivo, animal, se reflete nesses aspectos.

Todo ser humano tem uma dimensão étnica. Logo, não existe alguém que não tenha nascido em algum lugar. Por isso, todas as sociedades têm essa característica gregária de “formar as uniformidades” simbólicas e materiais que caracterizam uma cultura, uma etnia.

Seria ética, estética e estrategicamente importante para sociedade que todos os povos são constituídos por uma cosmologia, cosmogonia, mitologia, rituais e símbolos.

índice do livro Manual de Etnografia de Marcel Mauss, 1947.

O segundo ponto, foi que UX é um negócio. A experiência da pessoa que usa é a experiencia de uso do atendimento, do produto, do serviço. Uma etnografia das atividades dessa categoria de profissionais mostra que ela está ligada, em sua quase totalidade a atividades comercias. Existe sem dúvida uma parcela de profissionais de pesquisas de usuário e usabilidade em áreas como governos ou o 3º setor, mas a grande maioria dessa atividade é feita por empresas privadas.

Olhando esses dois pontos: o fator etnográfico e o comercial, toda pessoa pode ser compreendida, de algum modo, pesquisando-se seus desejos, anseios, necessidades, ambições, prazeres, medos, etc. Pautadas nisto, as empresas criam então as regras de negócio possíveis para oferecer produtos e serviços “humanizados”.

Para esse cenário delicado escolhi, lá na conversa, uma abordagem conhecida wicked problems. Atribuir ou cultivar atitudes desumanas é um ato grave. Tão delicada que mexe com o status mais íntimo, a identidade social. De modo rápido, essa abordagem pergunta como esses “problemas maliciosos” se relacionam, quais fatores econômicos têm impactos; a qualidade das informações disponíveis, e como as opiniões se completam, diferenciam ou mesmo se contradizem. Como a antropologia pensa essas questões?

Rituais Simpáticos

Mas, se apenas os seres humanos têm industrias, produções econômicas, porquê é preciso humanizar? Porquê seres humanos precisam humanizar o que fazem para outros seres humanos?

Vivemos em uma sociedade de classes, de gêneros e raças diferenciadas. Essas divisõesdificultam uma aproximação quando são percebidas como diferentes, ao invés de diversas. Por isso, os grupos sociais têm rituais que compensam as “diferenças”, formalizado o modo como estas se relacionam. Como disse etnólogo Arnold van Gennep:

“Os ritos simpáticos são aqueles que se fundam na crença da ação de semelhante sobre o semelhante, do contrário sobre o contrário, do continente sobre o conteúdo e reciprocamente, da parte sobre o todo e reciprocamente, do simulacro sobre o objeto ou o ser real e reciprocamente, da palavra sobre o ato.”

Os rituais são suspensões da realidade fluída pelas pessoas. O congelar do fluxo para momentos de sequenciamento, modificação, acordo e resolução de entidades, processos eventos. Quando damos um “bom dia”, quando “pedimos licença”, quando perguntamos se “tudo está bem”. São exemplos de marcação simbólica daquilo que está em curso na interação social. van Gennep segue dizendo:

“ Essas ações que tornam a rotina diária senão suportável ou justa, pelo menos revestem-na com um certo toque de mistério, dignidade e elegância.” Assim, ritualizamos as coisas para organizá-las, para enquadra-las no fluxo de ações que temos que desempenhar na sociedade. “

Os rituais e seus diversos tipos: os de contágio, os simpáticos, diretos, indiretos são todos baseados na premissa de que é preciso organizar, em certos momentos, e de tempos em tempos, a convivência social. Essa crença é tão arraigada que permite mostrar, por exemplo que papel cada pessoa no ritual deve desempenhar.

O rituais verbais são essa categoria de atitudes que tomamos como parte de nosso contato com os demais, segundo gradações de proximidade com o uso das palavras.

Do diálogo comercial para conversas sobre necessidades, limites e possibilidades

Em antropologia, há uma distinção fundante nas relações sociais: nós versus eles. O “nosso” grupo, povo ao qual pertencemos e os “estranhos”, os “de fora”. Essa visão monocultural interna dos grupos tem sido o problema para pensar e realizar o que se pretende com a humanização. Isto porque ela desconsidera o principal: relações mais gentis, mais recíprocas, mostram o limite entre o que é familiar e o que é estranho. Em ultima instância, tratar ao outro distante como trata seus próximos.

Não como uma lei geral, mas de um ponto de vista antropológico, discursivo, humanizar é performar rituais de simpatia. No processo de produtos e serviços, há uma discrepância entre as partes que demandam, e as partes que de fato têm um tratamento empático. Essa diferença entre o que deve ou não ser humanizado é uma discussão que as empresas não fazem sem olhar outros fatores, a começar pelo econômico, razão de sua existência.

Tendo como base a história dos assistentes de voz, o que tem sido feito para humanizar essas tecnologias é a construção de diálogos. Interações verbais mais naturais, menos formais, que levam em conta, linguisticamente falando, o registro do usuário.

Discurso direto, indireto e implicado

A palavra diálogo implica quase sempre em duas pessoas. Nas transações comerciais, o diálogo é humanizado quando as operações envolvidas são elididas de modo funcional, mas informal. Para isso, maneirismos, interjeições, gírias e toda uma série de recursos discursivos são empregados. Quando há mais de duas partes, temos uma conversa, quando o assunto converge, ou uma discussão, quando não há conclusão.

O aspecto constante dessa prática tem sido pensar as etapas de relações de compra e venda, de atendimento e suporte, em duplas dialógicas. De um lado o cliente, do outro, o atendente, o técnico, o vendedor, o supervisor, o gerente. Ao que parece, pensar essa dinâmica em duplas tem um porquê.

Esse procedimento entende a interação dessas pessoas como espelho o ato de aquisição comercial. Ao fazer isso, reduz a experiência do usuário às etapas do processo que a empresa entende que precisa para a venda de produtos e serviços.

A empresa é humanizada quando envolve todos seres humanos envolvidos em todos os processos necessários para o produto ou serviço da empresa.

Não há o que humanizar sem saber o que se humaniza. É impossível colocar o peso dessa tarefa em quem desenha essas conversas. Sem pesquisa real, que enxerga a transversalidade que de fato efetiva o processo, torna-se uma ficção afirmar que a humanização existe. Mas como UX é um negócio, as pessoas que desenham essas experiências, em sua maioria, têm as seguintes opções ao apontarem o que precisa (ou poderia) ser melhorado:

a) serem demitidas,
b) serem criticadas,
c) serem ignoradas,
d) serem ouvidas,
e) serem as responsáveis por implementar o que sugerem.

É preciso incluir vozes que não fazem parte do dialogo imediato. Não apenas os diálogos diretos, mas os indiretos e os implicados também. Isso deixa de acontecer se a jornada do usuário não cobre todas as etapas, ou as limita. O fio da conversa que as empresas acreditam ser o ponto forte do atendimento não é feito de duplas, é bem maior.

As noções de discurso indireto e implicado aqui são artefatos conceituais para pensar uma sequência de passos e, logo, de pegadas, de pistas… Essas etapas vão criando referências (indiretas e implicadas) sobre etapas anteriores. São incorporadas como compras, agendamentos, solicitações, reclamações, e demais procedimentos (dialógicos) que incluem terceiros para além da situação “imediata” de atendimento de cada etapa.

Em cada momento, os registros feitos pelas pessoas que performaram cada etapa, não desaparecem, estão indiretamente implicados. Não ver isso é ter pesquisado pouco como realmente ocorrem as atividades sociais. Ainda assim, há uma visão que encara como implementáveis apenas aquelas etapas que caracterizam o que a empresa entende como sua razão de existência: diminuir custos e maximizar os lucros. Humanizar é um processo e pensar essa trama como fios separados é um erro.

As pesquisas, seus materiais e suas apresentações estão soltas em nos nossos discos rígidos, guardados em backups nunca usados, em telas de sistema nunca acessadas, em relatórios e emails. Há, de fato, sinais de que esse cenário está mudando com iniciativas das pesquisas de UX research com sotaque brasileiro.

Interfaces de Voz humanizadas

A tendência em acreditar que para criar situações verbais harmônicas seja suficiente apenas a fala agradável esquece que o diálogo começa pela escuta. Numa situação onde há relações igualitárias cada parte ouve a fala da outra como sua familiar. Por outro lado, quando as relações são desiguais (ou hierárquicas) a perda dessa familiaridade dificulta a humanização.

Algumas referências:

GENNEP, Arnold van. Os ritos de passagem. Rio de Janeiro: Editora Cultrix, 1977.

WOYDACK, Johanna. Linguistic Ethnography of a Multilingual Call Center London Calling. New York: Palgrave Macmillan, 2019.

MAUSS, Marcel. Manual of Ethnography. trans. by Dominique Lussier. [ S. l.]: Durkheim Press, 2007.

Originally published at http://metaimagem.wordpress.com on November 9, 2021.

--

--

rogerio lourenco

linguistics, anthropology, data visualization, ethnomathematics, discourse analysis, technology, sk8brd, boomerangs.